quinta-feira, 26 de maio de 2011

Happy-hour

- Luiz, agora pode trazer aquela...
Ele já sabia que esse era o sinal de fim de noite. Até porque na mesa todos sorriam e falavam alto demais. Aquela sempre encerrava porque era mais forte, mais gelada e especialidade da casa.
Todas as sextas, a mesa do canto perto da entrada ficava ocupada e não tinha quem não soubesse da nossa estadia ali. Lugar cativo não se mexe. Somávamos em torno de oito que se encontravam para celebrar o mesmo motivo de sempre. Além da chegada do final de semana - óbvio - o que nos unia eram as histórias pra contar.
- Boa, Luiz! Já vai fechando a conta...
Naquela noite, o ambiente estava mais movimentado do que de costume. Ao fundo, um violão emanava muito bem a doce melodia das letras de Chico, nosso saudoso ídolo - e mais um motivo que nos unia. Com o copo na mão, um de nós bradou a letra, trocando em miúdos e expondo a melodia que soava. Cena digna de risos gerais, a voz deixou de cantar e o copo se juntou ao violão. E depois do desfecho, aplausos foram o melhor presente - junto com a conta.
- Bela cantoria! Semana que vem, você deveria cantar também.
- Cada semana é uma voz e um motivo novo, Luiz!
Claro que toda semana alguém cantava. E sempre o mesmo estilo. Um vez, resolvemos presentear-nos com a coletânea mais recente, bem no estilo de Buarque. Foi um motivo pra comemoramos na mesa do canto, até a bandeja entrou na cantoria.
Daí que depois da conta, o carro ficou cheio. O bom daquela sexta foi que estávamos bem e as histórias da semana foram deixadas na mesa - junto com a gorda gorjeta pro Luiz. No caminho, o único som que saia era das risadas e das lembranças do copo.
Essa vida de boemia é algo que nos conforta. Esquecemos de tudo enquanto estamos ali. Somos fortes, super-heróis com poderes, exemplos de coragem e de ousadia, somos capazes de fazer promessas que serão cumpridas com afinco. Juntos formamos uma tropa de choque, capaz de ultrapassar barreiras, contar de novo histórias surpreendentes e até aumentar certas aventuras.
O trajeto é longo e ao longo dele, eis que um refrão conhecido é cantarolado baixinho, com toda a sinceridade e verossimilhança, que a saudade da metade afastada é o pior tormento daquele velho coração amargurado .

domingo, 22 de maio de 2011

Semântica

Perguntei pro Aurélio
O nome do negócio que me preenche
Quando o assunto é aquele guardado
Ele me respondeu com uma palavra
No mínimo estranha, que conseguia expressar
Aquilo que eu não consigo expor graficamente
Tem polissemia, é conotativa
Ora verbo transitivo, ora substantivo masculino
Ora longe, ora perto - no íntimo do meu eu.
Mas Aurélio, não precisa ser literal
Nem tão exagerado
Há outras formas de usar essa palavra
Até acho que quem tá sentindo isso
É você, em meio à seus significados infinitos
Estás quase certo, caro senhor
Mas o que se passa aqui dentro é uma mistura
Dos opostos, das tradições, dos adjetivos, dos pensamentos
Expostos na vasta polissemia dessa palavra - e do seu oposto -
Que somados não resultam nem se assemelham a isso
Aconselho que vá estudar, porque de sentimentos
O senhor está atrasado alguns longos anos.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Autopsicografia

"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração."



Fernando Pessoa.

domingo, 15 de maio de 2011

Fairway

Eu odeio a sua ausência. Quanto mais longe você está de mim, mas eu me afasto de você e isso é estranho. Seu fantasma continua pairando meu dia-a-dia. Nos ônibus, todos têm o seu jeito. Seu perfume continua me perseguindo - e agora mais a ainda. Quando preciso de alguém, é em você que penso antes mesmo de precisar. Sinto sua mão na minha cada vez que tenho medo. Minhas palavras se tornam repetitivas, porque já não sinto a mais a dor, apenas convivo com ela. As músicas - principalmente as de sempre - ressoam em meus ouvidos e eu cantarolo algumas sem sentir. Meus olhos procuram os seus sempre que dou um passo a frente, a fim de ver seu sorriso e receber seu abraço. Busquei um nome que defina o que eu sinto, mas tudo se resume a você. Também tenho cansaço e isso torna meu sentimento rotineiro, que nem eu aguento mais. Às vezes acho que você faz de propósito, como se soubesse que ficar distante é o jeito certo pra que tudo fique bem. Eu concordo com você, mas tenho receio do próximo encontro. Aí você me pergunta porque eu encontro conforto em outros braços que você considera inferiores aos seus. Nem precisa de resposta, você a responde todos os dias, todas as vezes que fica ausente. Não reclamo do seu cheiro nem daquilo que me atrai em você. Pra falar a verdade, nem sei se quero que você me atraia mais. Quero dá um fim no "ciclo sem fim". Minhas palavras poderiam ter um tom triste, mas agora, elas possuem um tom de tentativa de adeus, de desprendimento. Eu poderia estar pior, mas quer saber? Eu amo sua ausência.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Disfarce.

Eu tenho um milhão de motivos pra fugir de pensar em você, mas em todos esses lugares você vai comigo. É impressionante a sua capacidade de onipresença na minha vida - mesmo que você esteja há quilômetros de mim. Você segura na minha mão na hora de atravessar a rua porque sabe que eu tenho medo, você me olha quando eu pego o celular pela milésima vez acreditando que você me ligou e eu não vi e sente orgulho de mim quando eu tenho sucesso em alguma coisa que parece tão banal e vira o rosto se algum homem vem falar comigo. Você prefere não ver, mas eu vejo você o tempo todo e isso, há muito, já me cansa.
Talvez o certo seria uma rebelião da minha parte. Algo parecido com os textos que você lê, reivindicando atitudes, assumindo posturas e radicalismos. Ou talvez o certo seria ações meio desesperadas, de forma que você soubesse rápido e ficasse imóvel diante do meu texto confuso e cheio de períodos. Ou fugir da sua presença, com um sorriso amarelo e um abraço distante; procurar erros na sua conduta pra justificar minha ausência; arquitetar planos com detalhes que você odeia; ser totalmente fria e calculista por saber isso incomoda... Daria totalmente certo com qualquer outra pessoa, menos com você que sabe exatamente como reverter cada situação com um olhar diferente, com um toque carinhoso e uma fala mansa. Você transforma demais tudo o que eu tenho sob controle. E isso se torna um problema porque você sabe exatamente o que eu preciso só que prefere deixar como estar, pra não repetirmos dores - que você não sentiu - passadas. Eu te anulo o tempo todo dizendo para mim, repetindo para mim, o quanto você falha, o quanto você fraqueja, o quanto você se engana. E fazendo isso, eu só consigo piorar as coisas. Pra mim.
Talvez o que existe dentro de mim - que eu não sei o nome - tenha aprendido a ser menor só para nunca deixar de existir e ser menos dolorido e com lágrimas. Só pra ser distante, escondido, disfarçado na sua onipresença.