sábado, 30 de julho de 2011

Releitura

Como em toda sexta, dona Marta voltou da feira com a sacola cheia. O céu brilhava estranhamente no inverno e até estava fazendo calor. Mesmo assim, a casa estava bagunçada. Então dona Marta começou a arrumar e a limpar também. Deixou a sala um brinco e ao partir pro quarto, observou que o cômodo há muito precisava de uma nova organização. Sozinha em casa, com 63 anos e uma visão impecável, retirou os livros da prateleira e o quadro de fotos - hábito que mantinha desde a mocidade. Após desnudar o quarto, pensou no que mudar de lugar.
Foi então que sua vida passou como um filme em sua cabeça. Talvez o excesso de sol tenha feito isso, mas dona Marta realmente precisava mudar de lugar muita coisa na sua vida - só não tinha reparado ainda. Será que vivi direito meus 63 anos? O que fiz com meu casamento? Aproveitei meus momentos felizes, aprendi com os tristes? Eram perguntas bobas, mas fez toda a diferença na organização daquele quarto.
A cama trouxe lembranças do casamento, do marido carinhoso e dos momentos em que dona Marta se sentiu mulher, querida - pena que tudo foi uma fantasia momentânea, pois logo após o casamento, seu Leopoldo partiu com a dançarina do cabaré, o que deixou na mulher a marca da renegação. Com a moral abalada, dona Marta decidiu não abaixar a cabeça e saiu à luta. Foi na biblioteca deixada pelo marido que encontrou uma nova vontade de viver e a renda para seus dias - foi então que o armário começou a ficar pesado, graças aos títulos dos romances e dos policiais que ela não vendeu e fez questão de guardar. Fora feliz na livraria construída embaixo da casa que viveu e sorriu novamente. Na mesinha de cabeceira, encontravam-se as cartas por tanto tempo trocadas entre o jovem casal. As folhas eram amareladas e a caligrafia gasta, mas todas estavam no mesmo envelope azul-marinho; na caixinha de jóias a única recordação boa que seu Leopoldo deixou foi a correntinha de ouro que presentou sua então amada no dia em que declarou-se apaixonado por ela. Quanto mais dona Marta vasculhava seus móveis, mais recordações tinha do marido que se foi. Tudo parecia tão distante, mas era próximo demais. Seu coração nunca tinha experimentado tamanha paixão. Paixão revivida - pela enésima vez; dona Marta já tinha perdido as contas de quantas vezes seu Leopoldo tinha aparecido na sua velha casinha perto da praça - fazia três meses, do mesmo jeito como ele deixou quando se foi, com o mesmo cheiro, com o mesmo sabor. Com a mesma personalidade confusa, com o mesmo comportamento estranho e distante...
Daí que dona Marta, depois de ter molhado a blusa nova das lágrimas que derramou, resolveu jogar fora tudo o que remetia ao seu velho e constante amor. Jogou fora as recordações, os lençóis gastos pela paixão, as cartas e escondeu o que o coração clamou por não se desfazer. Colocou a cama embaixo da janela para que o calor da saudade não assolasse seus dias. No armário pesado, restou o gosto pelo policial, já que o romance era coisa da mocidade e, mesmo inteirona, seu coração já estava desgastado pela dor. Para a mesinha de cabeceira, ficaram os santinhos, as orações e dentro das gavetas as páginas em branco a serem escritas por novas histórias. Não conseguiu rasgar uma foto se quer em que ele estava. Como desculpa, precisava vê-lo imóvel e calado para que a força de não lembrar-se dele fosse maior. Escondeu no fundo falso da caixinha de jóias a correntinha e a vontade de amar novamente daquele jeito.
Levou a tarde toda para se desfazer de qualquer coisa que remetesse à ele. O sol foi se pondo, junto com suas mais remotas lembranças. O frio do inverno foi invadindo a casa - incrivelmente - e gelando o coração magoado. Pena que o frio conservou as feridas... Não fazia a menor ideia de onde seu Leopoldo estaria agora - talvez com alguém que estivesse satisfazendo suas necessidades de carinho e atenção, coisa que jamais tivera feito pelo jeito.
De uma coisa dona Marta tivera plena certeza naquela tarde. Tinha colocado em ordem muita coisa bagunçada de sua vida. E que, daquele dia em diante lutaria para ser mais forte, mais esperta, mais astuta, com novas respostas, novas vontades. Para experimentar novos amores, mesmo com a idade avançada.
E o que era pra ser simplesmente uma organização no quarto, virou uma epifania.

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